Seu corpo ainda doía. A noite fazia-se longa.
As marcas em suas costas denunciavam a falta do amor paterno. Ficariam ali, por
muitos dias, confirmando a ignorância de quem está despreparado para o
exercício de ser pai. Mas essas marcas sumiriam com o tempo, eram marcas
físicas. A marca que o acompanharia pelo resto de sua vida, seria a fenda aguda
deixada em seu coração de menino de doze anos.
Não entendia por que apanhava tanto. Fazia
tudo o que ordenava seu pai: levantava-se cedo para catar latinhas e pedir
dinheiro no sinal. Invejava as outras crianças de roupas brancas, sempre bem
arrumadas, que todos os dias via entrar em um prédio de estrutura grande e
aparência acolhedora. Certa feita, alguém lhe disse que o nome daquele lugar, tão
distante de sua realidade, chamava-se escola. Queria também está ali. Queria,
embora não soubesse o que lá se fazia. De certo seria melhor que voltar para
casa, onde como companheira tinha apenas a ignorância e a violência
constituindo o caráter daquele homem que lhe havia posto no mundo. Tinha medo.
Desde quando tomara consciência da realidade lembrava-se daquela figura
masculina que, embora morando na mesma casa, lhe era totalmente estranho.
E a noite continua longa. Seu corpo dói.
Tantas vezes passara por isso, mas nunca conseguia se acostumar.
Ali, deitado sobre a precária cama
constituída de papelão, os pensamentos de um passado que não deixou saudades
dominava-o totalmente.
Não conhecera sua mãe. Esta morrera em seu
parto, contavam-lhes algumas pessoas. Diziam também que foi a partir desse fato
que seu pai começara a ficar dependente do álcool.
Muitas das vezes em que fora espancado,
lembrava-se de seu pai culpando-o pela morte de sua mãe. Talvez por isso
apanhava tanto. Talvez por isso não era amado. Talvez por isso não merecia
viver. Talvez por isso não sabia o que era ser criança.
E a noite continuava longa. Agora a dor
aumenta. Sozinho entre entulhos, a dor aumenta. Parece que essa surra foi maior
que as outras. Por qual motivo? Talvez por ter nascido.
Em meio à dor, as lembranças continuavam a
dominá-lo. Lembra-se dos natais que não vieram, dos aniversários que não
comemorou, dos amigos que não teve, da infância que não deixou saudades. Era
sobrevivente até essa idade porque seu pai contou com a ajuda de um anjo que
morava ao lado de sua casa, mas que morrera quando ele ainda tinha seis anos,
vitimada por um câncer.
Não sabia se devia agradecer ou culpar a
mulher vizinha por tê-lo feito viver. Se é que aquilo merecia ser chamado de
vida.
E a noite continua num compasso mais lento
que o normal. Começa a se contorcer de dor. Tem vontade de gritar, mas não
pode, do contrário acordaria seu pai e as consequências seriam piores. Tem que
resistir calado. É mais seguro assim. Se não tivesse gastado com pães para
saciar a fome de dois dias o dinheiro que conseguira no sinal, talvez não
estivesse naquela situação. Mas era preciso. Não aguentava mais. Seu pai ficara
irritado porque usaria o dinheiro para alimentar o seu vício alcoólico.
Será que Deus existe? Perguntava-se, se
existe, por que permitia que tudo isso acontecesse? O que fez para merecer
sofrer tanto sem ao menos uma interferência divina? Talvez seja realmente
culpado pela morte de sua mãe. Talvez por isso seu sofrimento é alheio as
divindades celestiais. Devia pagar pelo crime cometido, pensava ele.
E a dor aumenta, e a noite fica mais fria, de
repente sente um abraço, uma sensação de acolhimento domina o seu ser. Mas quem
é? Não importa, a dor já não existe mais.
Finalmente a noite acaba, mas o dia não
chega, seu sofrimento finalmente chega ao fim.
Autor: Hugo Brito
Autor: Hugo Brito
2 comentários:
Diante do que foi dito neste magnifico texto...me resta apenas parabeniza-lo... e ainda complementar seras um grande doutrinador na área Jurídica.
Diante do que meus olhos pode ler...
tenho a plena convicção que seras um grande doutrinador Jurídico...
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