Na
Amazônia, uma disputa entre cônsul e Ibama pelo livro sagrado
Foto: Visão aérea da Aldeia São Joaquim, Jordão - Acre
ROBERTO MALTCHIK/O GLOBO
RIO - A ação de uma ONG baiana, presidida pelo cônsul honorário da Holanda em
Salvador, numa terra indígena no Acre, quase na fronteira com o Peru, pôs o
Ibama em alerta e se transformou em mais um rumoroso episódio de suspeita de
acesso ilegal ao patrimônio genético da biodiversidade brasileira. Em jogo, o
conteúdo de um livro da etnia Kaxinawá, com a linguagem e as receitas xamânicas
relacionadas a 516 ervas medicinais, que teriam o poder de curar 386 tipos de
doenças tropicais, especialmente provocadas pelo contato entre o homem e outros
animais.
O caso remonta ao ano de
2010, quando o etnomusicólogo brasileiro Ricardo Pamfilio de Souza, financiado
pela ONG Arte, Meio Ambiente, Educação e Idosos (Amei), entrou em contato com o
pajé Augustinho, da Terra Indígena Kaxinawá do Baixo Rio Jordão (AC), uma das
onze áreas oficialmente povoadas pela etnia em solo brasileiro. O Brasil tem
cerca de 6 mil índios Kaxinawá. Outros 4 mil vivem no Peru.
Da conversa entre o
visitante e o pajé, surgiu o projeto para publicar um livro, em língua nativa,
cujo objetivo seria preservar a cultura e o Hãtxa Ruin — a língua dos Kaxinawá.
Ocorre que, para “preservar a linguagem escrita”, Panfílio diz que o pajé
Augustinho escolheu justamente o conteúdo secular das receitas xamânicas, o
“Livro Vivo dos Kaxinawá”, um tesouro da biodiversidade amazônica que,
inclusive, já foi alvo de estudos e publicações de botânicos brasileiros, mas
com anuência do Conselho de Gestão do Acesso ao Patrimônio Genético (Cgen),
presidido pelo Ministério do Meio Ambiente.
A Funai informa que não
mediou o acordo entre a Amei e os Kaxinawá e que a comunidade não se beneficiou
da ação. Para o Ibama, o livro “pode conter um conjunto de ‘senhas’ para usos
de plantas medicinais brasileiras, potencialmente úteis à saúde humana e
cobiçadas pela indústria farmacêutica mundial”.
Após mais de um ano de
investigação, Pamfílio e Hans Joseph Leusen, empresário de 73 anos, cônsul
honorário da Holanda em Salvador e presidente da Amei, foram multados, no ano
passado, em R$ 100 mil, sob a acusação de usar o conhecimento tradicional para
prospectar, ilegalmente, plantas com potencial uso comercial. Ambos tiveram
acesso ao conteúdo do “Livro Vivo”, sendo que os originais continuam na aldeia.
Em 2011, durante operação
do Ibama no Baixo Rio Jordão, o pajé Augustinho afirmou, de acordo com
relatório da investigação ao qual o GLOBO obteve acesso, que Pamfílio teria
armazenado informações em seu notebook com a intenção de produzir dois livros,
um de ensino vegetal e outro, o “Livro Vivo”, que seria composto por relatos
feitos na floresta pelo próprio pajé, apresentando as plantas e seus
respectivos usos. Em meados de 2012, com fortes dores abdominais, o pajé
Augustinho caminhou para floresta em um ritual de morte. Hoje, a publicação
está embargada.
“Leusen e Panfílio
desenvolveram ardiloso mecanismo para obterem dados do conhecimento tradicional
associado do povo Kaxinawá, mediante sutil aliciamento de seu pajé, com vistas
a terem posse de informações peculiares sobre como e para quais finalidades
devem ser utilizadas espécies da flora brasileira, em evidente bioprospecção”,
pontua trecho do relatório de investigação.
Mas o Ibama não conseguiu
provar se houve transferência do conhecimento absorvido pela Amei para agentes
de dentro ou de fora do Brasil. Pamfilio e Leusen recorreram das autuações, e o
processo administrativo no Ibama será julgado nos próximos dias. O cônsul
holandês demonstra revolta com a ação do Ibama, que classifica como equivocada.
— Esse processo já me
custou uma fortuna de advogados por uma coisa que nós não fizemos. Nós não
fizemos nada de errado e estamos sendo multados. Esse livro é feito pelos
índios, e nós iríamos ajudá-los. É completamente diferente (do que o Ibama
afirma). Dentro do processo não há prova! Eu sou o cônsul da Holanda, eu
plantei 140 mil árvores na Mata Atlântica, eu ajudo idosos na rua e o Ibama vem
destruir o meu nome! — protesta Leusen, que admite que a negociação ocorreu sem
autorização da Funai: — Vamos ser honestos: quando você pede alguma coisa para
a Funai, você não recebe resposta. Nós fomos lá e fomos convidados pelos índios.
A sustentação é
corroborada por Pamfílio, ao ressaltar que a Constituição assegura a qualquer
pessoa livre acesso à terra indígena, desde que haja convite formalizado pela
comunidade.
— Eu comuniquei à Funai o
convite dos índios. Não é uma investigação científica de bioprospecção. É um
trabalho educacional indígena, cuja língua nativa está se perdendo. Não é
acesso aos conhecimento tradicional associado ao patrimônio genético. Nem eu
nem o Hans conhecemos laboratórios ou conversamos com laboratórios. Eu só quero
concluir o meu trabalho — afirma Pamfílio.
Questionado, o Ibama
sustentou a versão do relatório: “temos uma reunião de provas obtidas ao longo
de meses de investigação que fornecem a materialidade necessária aos processos
instaurados de penalização”. O resultado da apuração foi encaminhado ao
Ministério Público Federal, mas, como é uma infração administrativa, processo
no MPF foi arquivado.
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