Forjado nas curvas do rio, no topo dos
morros, na chama da poronga e no corte da seringueira, o povo do Jordão vive em
um tempo diferente das grandes cidades.
Sem acesso por terra,
apenas pelo Rio Tarauacá e por avião, a pequena cidade vive dias e noites
imersa em uma tranquilidade incomum neste mundo globalizado. Isso tudo sem
esquecer os desafios de organização necessários a uma zona urbana próspera.
São quatro terras indígenas no Jordão (Foto: Arison Jardim/Secom) |
Tanto as muitas histórias com índios não
contatados quanto o passado de muito trabalho dos seringueiros (indígenas e não
indígenas), o território do Jordão atualmente é composto de uma cultura de
forte relação do homem com a natureza.
São quatro terras
indígenas (TIs) (Kaxinawá Alto e Baixo Rio Jordão, Seringal Independência, da
etnia Huni Kui, além da TI Alto Rio Tarauacá, exclusiva para índios não
contatados) e uma reserva extrativista, a do Rio Tarauacá.
Os que não querem viver
todos os seus dias na floresta fazem a opção de migrar para a zona urbana, que
hoje já contabiliza 34% da população.
Jordão, desde 1992,
quando passou de vila para cidade, está se modernizando sem perder a conexão
humana com a natureza e dando um importante exemplo de convivência na luta
contra o preconceito.
“De primeiro, tinha parentes que não
conheciam o Jordão, era difícil ir para lá. Hoje já está legal, muita coisa
mudou” - Tuxá Kaxinawá, Aldeia Nova Cachoeira.
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Dos cerca de sete mil
moradores, mais de dois mil são indígenas. Muitos ou possuem casa no bairro
Kaxinawá ou visitam periodicamente a cidade. Um das duplas musicais que animam
as festas no fim de semana é indígena e, na Aldeia Lago Lindo, anualmente, é
realizado o Festival Xinã Bena do povo Huni Kui, que recebe turistas do mundo
todo.
“De primeiro, tinha parentes que não
conheciam o Jordão, era difícil ir para lá. Hoje já está legal, todo mês vamos
ao município, tem muitas atividades. Muita coisa mudou. Nossa população indígena
aumentou e a cidade está organizada”, afirma o agente agroflorestal e líder da
Aldeia Nova Cachoeira, na TI Baixo Jordão, Deodato Maia, ou Txuã, em sua
língua-mãe.
“Aqui nas aldeias
vivemos tranquilos, na nossa tradição, vivemos na floresta. Preservamos e
cuidamos dela. Na cultura é assim, a gente se alimenta da pesca e da caça. Tem
o roçado de macaxeira, banana, amendoim, milho, inhame e cana-de-açúcar”,
continua Txuã. Mesmo vivendo na tradição, a comunidade não deixou de buscar
avanços. Atualmente, com apoio de uma organização internacional, possui um
moderno sistema de abastecimento de água a energia solar. Em breve, as 32
aldeias da região também poderão ter água potável por meio de poços que o
governo do Estado construirá.
“Eu fui bem recebido no Jordão. Quando você é
bem aceito e a comunidade te acolhe, é muito bom” – Artur Samosa.
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Nascido em Rio Branco, capital do estado,
Artur Samosa é exemplo do que o ar do Jordão pode fazer com quem o respira. Em
uma viagem de trabalho, ao lado de um grupo Huni Kui, pelo rio, percebeu que
ali sua vida mudaria. “Quando eu vinha subindo o Rio Tarauacá, já com três horas
de viagem, senti aquele ar totalmente diferente da capital. Um ar puro, da
natureza. Aí pensei comigo: ‘Eu que volto? Volto não!”, rememora Artur, em
frente a sua casa, enquanto sua filha brinca correndo entre o quintal e a
calçada.
Desde então, já são quase
20 anos vivendo com quem lhe recebeu bem. No interior do Acre observa-se com
frequência a atitude de acolhimento, são poucos os que dormem na praia em uma
noite fria se existe um morador ribeirinho próximo, e fome não se passa quando
há uma galinha caipira no quintal. A cidade, sua gente e sua cultura abrigam
quem por ali passa: “Quando você é bem aceito, quando a comunidade te acolhe, é
muito bom”, afirma Samosa.
História entre pais e filhos
Edinei acorda todos os dias com a vista
direto para o rio (Foto: Arison Jarim/Secom)
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Com membros espalhados pelo
território do Jordão e do Acre, a família Marçal de Castro é um exemplo dos
caminhos que o destino percorre. Edinei, de 42 anos, junto de outros irmãos,
mantém a colônia Revisão, antiga colocação do Seringal São José. Pai e mãe,
Aldenir e Lucimar, há um ano se mudaram para a cidade, onde outra filha já
morava desde os 18 anos e atualmente ganha a vida com sua brincadeira de
criança, a costura.
“Eu gosto de morar aqui porque foi onde eu
nasci e me criei”, diz Edinei (Foto: Arison Jardim/Secom)
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Após receber alguns viajantes do rio, que
acompanhavam o transporte de insumos para obras de saneamento na cidade,
Edinei, mesmo que com poucas palavras, conta um pouco do seu sentimento sobre
aquele pedaço de terra, a beira do Rio Tarauacá, cercado por pequenos morros:
“Eu gosto de morar aqui porque foi onde eu nasci e me criei. Onde construí
família e conseguimos alguma coisa para sobreviver. Aqui eu planto a roça, o
milho, banana, arroz”.
A rotina é acordar,
fazer o café, dar milho para as galinhas e porcos, averiguar os bezerros e
seguir para limpar ou colher no roçado. Pode não parecer muito para quem olha
com a visão embaçada pela pressão das cidades, do trânsito e dos entraves de
uma sociedade habituada a oito horas de trabalho por dia. Mas as horas na mata
eram bem cansativas. O pai, Aldenir, fez isso e algo mais até seus 63 anos; há
apenas um se mudou para a cidade. “A opção da gente era essa. Se acordava cedo,
se jogava na mata e cortava seringa para sustentar a família”, explica o
simpático senhor, agora comerciante.
Como boa parte do Acre,
Jordão teve grande comércio de borracha. É possível conhecer pessoas que
exploraram o látex até a década de 1990 na região. Hoje, o governo do Estado e
prefeitura buscam novas alternativas para a região. Os investimentos em
produção são focados na agricultura familiar, com o Programa de Aquisição de
Alimentos (PAA), com recursos do governo federal, além de haver compra dos
produtos para merenda regionalizada nas escolas, por parte da prefeitura.
“Eu gosto da floresta, a verdade é essa”, diz
Aldenir (Foto: Arison Jardim/Secom)
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Mesmo com muito trabalho no passado, o seringueiro
Aldenir tem boas lembranças das matas onde estruturou sua família. “Eu via
caça, serpentes, aquelas que ficavam enroladas, até hoje eu tenho o maior medo.
Mas via também aquela bondade nas pessoas”, conta.
A relação com a natureza não era simplesmente de
exploração de recursos. Na Amazônia, os povos da floresta aprenderam que a
natureza é sua casa. “Quando estava muito enfadado, chegava no igarapé e bebia
aquela água bem fria. Muitas vezes eu tomava banho quando estava muito suado”,
lembra, com certa nostalgia na voz. “Eu gosto da floresta, a verdade é essa.
Não estou adaptado ainda na cidade”, revela.
Brincadeira de
criança virou profissão
Antônia, filha de Aldenir, desde os 19 anos já
vivendo na cidade, mostra-se mais acostumada e, graças à compreensão dos pais,
criou gosto pela costura já na infância. “Desde a idade de nove anos que
comecei a pegar na máquina da minha mãe. Ela saía e eu ia costurar escondida,
quebrava as agulhas, mas fui fazendo. Comecei a fazer roupa para os meus irmãos
e fazia roupa de boneca”, conta. A clientela era grande já na infância, eram 12
irmãos precisando de roupa nova, além dos vizinhos que a procuravam sempre.
“Eu faço o que eu gosto, sou feliz em ter
essa profissão”, diz Antônia (Foto: Arison Jardim/Secom)
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“A Antônia ficava à vontade na máquina de
costura da mãe dela, aprendendo. Por umas duas vezes, levei ela para plantar a
maniva de mandioca. Aí quando o sol tava esquentando, ela plantava a roça e
ficava enxugando o suor. Logo vi que aquilo não era para ela”, explica Aldenir.
“Enquanto eu ajudava o
Aldenir no roçado, ela ficava na máquina. Me sinto orgulhosa agora, vendo que
ela aprendeu e está caminhando sozinha”, afirma a mãe, Lucimar. Antônia, depois
de concluir o ensino médio, buscou alternativas para ter sua renda. Após a
experiência de ser funcionária não tê-la agradado, decidiu definitivamente
viver da costura.
Com uma máquina simples,
fez um curso pelo Pronatec e recebeu um moderno equipamento de costura pela
Secretaria de Pequenos Negócios do Acre como apoio. “Eu faço o que eu gosto,
sou feliz em ter essa profissão. Sei que isso aí eu adquiri pelas necessidades
e pela vontade, eu sempre quis”, diz ela.
Cultura tradicional e avanço social
Academia e treinos diários na praça para o
público propenso à obesidade, creche noturna para mães estudantes ou que
trabalham, pré-natal para todas as gestantes, incluindo ultrassom mensal, obras
de saneamento em toda a zona urbana. Essas ações, do Estado ou prefeitura, dão
oportunidade a uma cidade de crescer de forma organizada.
No Jordão, os avanços da
globalização não deixam de chegar, mas existe uma conexão da natureza com os
habitantes da cidade, o que fortalece ainda mais a cultura de povos da
floresta.
A família de Lucimar,
Aldenir, Antônia e Edinei é símbolo de um novo tempo para os municípios e para
o estado. As tradições dialogam com os avanços sociais. “Antes de ter minha
filha, até pensei em sair, mas desisti. Quero continuar no Jordão, quero
tranquilidade para minha família”, afirma Antônia.
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